sábado, 10 de março de 2018

Quaresma versus Renovação


Para nós católicos as grandes Festas são sempre precedidas por períodos mais ou menos longos, para se combater a rotina, o ritualismo e a superficialidade das vivências, e se mergulhar verdadeiramente no espírito de cada Tempo do Ano Litúrgico. Refiro-me em especial ao Advento, que prepara o Natal, e à Quaresma, que prepara a Páscoa Neste momento encontramo-nos em plena Quaresma, um tempo cujas raízes mergulham na experiência sofredora e libertadora do Êxodo, um acontecimento estruturante da vida e identidade do Povo Judeu, e que marca a sua saída do Egipto, onde era escravo, em direcção à Terra Prometida, terra da liberdade.

Na tradição cristã a Quaresma é um tempo que convida à introspecção, à sobriedade, à maior proximidade com Deus, para que a relação com o próximo possa renovar-se e assentar em bases mais sólidas, e traduzir-se em verdadeira fraternidade, radicada na nossa comum filiação divina (somos filhos Deus, em Cristo).

Um dos méritos deste tempo pode residir no desafio que ele nos coloca, a nós que vivemos por vezes escravos do Tempo e condicionados pelo stress, que nos acelera e fragiliza, a que façamos a experiência do silêncio, da paragem, da oração e da partilha fraterna, em beneficio do próximo mais necessitado. A correcta vivência destes meios, pode mesmo proporcionar-nos uma preciosa ajuda no nosso crescimento pessoal, dando densidade à nossa vida, e fazendo-nos centrar naquilo que, verdadeiramente, é essencial e que com frequência nos escapa, devido ao ritmo frenético e até alucinante da vida hodierna.

Para além da dimensão, obviamente, religiosa deste tempo, creio que os seus beneficias se poderão fazer sentir no todo da nossa vida, uma vez que em nós não há dimensões estanques e, por isso, o bem que fazemos a uma das dimensões da nossa vida reflectir­-se-á naturalmente em todas as outras. Penso que não é despiciendo até fazer esta analogia com uma campanha turística que dizia: “Vá para fora cá dentro".Com efeito, mesmo na nossa casa, no nosso trabalho, onde quer que estejamos podemos mergulhar no espírito quaresmal e descobrir e discernir o essencial do acessório, fazer um balanço, projectos, inverter  caminhos e processos e, no fundo, enriquecermo-nos descobrindo que a partilha com o outro/próximo nos torna menos egoístas e individualistas, e perceber como aquilo, por pouco que seja, a que nós renunciamos pode significar muito, se o orientamos no sentido da ajuda para os que são mais carenciados do que nós. O nosso pouco, multiplicado por muitos outros poucos faz muito e marca a diferença.

Às vezes quando se fala da Quaresma corre-se o risco de salientar apenas os aspectos negativos e cinzentos, quando o verdadeiro espírito quaresmal é precisamente o inverso. Depois das máscaras do Carnaval, a Quaresma convida-nos à transparência Este tempo, de facto, convida-nos a estarmos atentos às tentações do TER, do PODER e do PARECER, que têm muitos rostos e muitos nomes, que batem à nossa porta, e onde é fácil tropeçar e deixarmo-nos enganar, confundindo raiz e copa, conteúdo e continente, ouro e purpurina, verdade e aparência… Faz-nos falta lembrar e meditar na célebre frase de Antoine de Saint-Exupery, no Principezinho: “o essencial é invisível aos olhos. Só se vê bem com o coração.

A Quaresma pode bem ser esta ocasião na vida de cada um de nós. Aproveitemo-la e valorizemo-la.

in Ecos de Grândola, nº 311, 09 de Marçoo de 2018