domingo, 14 de julho de 2019

Imigração no Alentejo: Problemas e Desafios



A Igreja Católica tem uma história duplamente milenar e está, por isso, habituada a enfrentar as mais complexas e diversificadas situações, aceitando-as como desafios à desinstalação, à mudança, à superação e à renovação, sempre confiando na acção e protecção de Deus e nas pessoas que Ele providencialmente vai suscitando, ao longo dos tempos, como sinais da Sua presença.

1. Os primeiros passos da jovem comunidade cristã: a expansão
Depois da Morte e da Ressurreição de Jesus a pequena comunidade cristã, maioritariamente formada por Judeus convertidos, sentiu na carne a perseguição movida pelas Autoridades Judaicas e pelo Império Romano, e muitos dos seus membros tiveram de fugir e de procurar refúgio fora da Terra Santa; levaram consigo, porém, a fé como tesouro a partilhar, semente a lançar à terra. No início, anunciavam a fé cristã apenas aos Judeus, mas, gradualmente foi aumentando o número dos não-judeus (vulgarmente conhecidos por pagãos) que batiam à sua porta, à medida que ela (Igreja) se ia espalhando e alargando por todo o Império Romano. O dinamismo, a audácia e o desassombro, eram notas características desta jovem e fervorosa comunidade.

Os cristãos tinham consciência que não pertenciam a uma elite, a um povo específico, a uma raça, e não se distinguiam das outras pessoas por viverem em bairros específicos, usarem roupas diferentes ou falarem uma língua própria (Didakhé). Eles tinham antes a consciência de que faziam parte de uma Família, na qual, como disse S. Paulo, o Apóstolo dos Gentios, em Cristo já "não há judeu, nem grego, escravo ou homem livre... Jesus veio dizer-nos que há um só Deus que a todos ama, e quer que n’Ele (Filho) também nós descubramos a nossa comum condição de filhos de Deus, possuidores da mesma dignidade. Distinguiam-se sim das outras pessoas, pelo seu modo de vida: "Vede como eles se amam", diziam aqueles que ainda não eram cristãos; e foi este o grande segredo da rápida expansão da fé cristã.

2. O Mundo Greco-Romano
O embate com o Mundo Greco-Romano foi duro, e implicou encontrar linguagem nova ou dar um sentido particular à já existente, para exprimir o essencial desta nova fé. Além do mais, os cristãos não seguiam os deuses do Império, sendo olhados com desconfiança e até desdém pelo status quo, e as perseguições não se fizeram esperar: foi impressionante a violência que se abateu sobre a Igreja, provocando um número indeterminado de mártires.

No ano 313, tudo se altera com o Édito de Milão, no qual o Imperador Constantino decretou que o Cristianismo deixasse de ser perseguido, passando gradualmente a tornar-se Religião Oficial. E, num ápice, milhões de pessoas entraram para a Igreja, engrossando as filas desta Família, formada cada vez mais por gente de todas as raças, povos, línguas e culturas, que compunham o Império Romano. Este processo acentuou-se com a integração dos povos vulgarmente conhecidos por Bárbaros, que acabaram por se tornar cristãos, numa amálgama verdadeiramente babilónica, que prosseguiu com a cristianização dos Eslavos e dos demais Povos que habitavam o Continente Europeu.

Foi o Cristianismo, com efeito, que, juntamente com a herança Judaica e a Greco-Romana, contribuíram para a formação e consolidação da identidade deste Continente a que chamamos Europa. Foi aqui que o Cristianismo ganhou raízes e daqui se projectou para os outros Continentes, chegando todos os povos, raças e línguas, tornando possível um verdadeiro encontro de culturas e uma fecunda inculturação da fé cristã, que assim se foi enriquecendo e tornando verdadeiramente Católica (universal).

3. Evangelização e Encontro de Culturas
Do Continente Europeu, com efeito, partiram milhares de missionários, que levaram a todos os povos dos outros Continentes a Boa Notícia de que temos um Deus que acolhe e não exclui, que ama a todos e com todos se preocupa, e quer que formemos uma única Família Humana. Foi esta motivação que animou e levou gerações de jovens, muitos deles portugueses e alentejanos, a confiarem em Deus, sem outras seguranças, e a partirem com o risco da própria vida, fundando comunidades cristãs por todo o Mundo, no meio de adversidades e perseguições, mas guiados pela alegria do Evangelho.

Permitam-me agora partilhar convosco uma história que me toca particularmente. Em Setembro de 1994 cheguei a Roma para estudar na Academia Afonsiana (Instituto Superior de Teologia Moral), ficando a residir no Pontifício Colégio Português. Aqui éramos conhecidos pelo nosso apelido paterno e o meu é Rosário. Qual não foi o meu espanto, quando o Reitor do Colégio me pediu para eu usar o meu apelido materno, Guerreiro, e a razão era esta: no Colégio residia um Sacerdote natural do Bangladesh chamado: Camilo do Rozário. Como é óbvio acedi, e entre nós Rozários, estabeleceu-se de imediato uma amizade, consolidada em profícuos diálogos que fluíam em catadupa, tal o meu desejo de conhecer mais sobre este novo Mundo que se me abria. O meu novo amigo Camilo dizia-me com orgulho, e nunca mais o esqueci: "Manuel, nós somos descendentes dos portugueses". O Bangladesh é um país com cerca de 168 milhões de habitantes e os católicos são algumas centenas de milhares, que o Papa Francisco teve, aliás, ocasião de visitar o ano passado (2018), ano que coincidiu com as celebrações dos 500 anos da sua evangelização, tarefa dos missionários portugueses, que levaram a muitas das nações da Ásia e dos outros Continentes, esta nova fé.

4. Igualdade e Primado do Ser Humano
Se uma das riquezas do Cristianismo foi e é a afirmação da igualdade e da dignidade de todos os seres humanos, outra não menos importante, é a prioridade das pessoas sobre as coisas. Essa foi, aliás, uma das principais novidades da mensagem de Jesus, segundo a qual, o mais importante são as pessoas, uma vez que o Cristianismo é: "Um Humanismo aberto à Transcendência" (Papa Bento XVI). O Homem foi o "caminho de Cristo" e é "o caminho da Igreja" (João Paulo II). Esta convicção levou o Concílio Vaticano II (1962-1965) a afirmar na Constituição Gaudium et Spes: "As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre e com o seu coração. (...) Por este motivo, a Igreja sente-se real e intimamente ligada ao género humano e à sua história" (nº 1).

A Igreja deve, pois, estar atenta a tudo o que é humano e aos desafios que se colocam à Humanidade, em todos os tempos e locais do Mundo. A defesa do ser humano, da sua dignidade, dos seus direitos, é uma questão de identidade, está no seu ADN.

5. O desafio das migrações
Um dos desafios da Humanidade foi sempre a deslocação de grandes massas humanas e o seu acolhimento em contextos novos. As motivações foram e são muitas e de vária ordem. Basta lembrarmo-nos da nossa história, a partir do Século XV. Quantos milhões de portugueses partiram e permaneceram em diáspora, espalhados pelo Mundo?

A condição de migrante tem sido, aliás, uma das notas do nosso modo de ser português e, por isso, temos uma enorme responsabilidade de acolher aqueles que buscam entre nós um futuro melhor para si e para as suas Famílias. Lembremo-nos das experiências dolorosas, dos esforços de integração e consolidação que tantos dos nossos concidadãos fizeram, e não cometamos os mesmos erros que apontamos aos que nem sempre nos acolheram como deveriam. Somos todos pessoas, não coisas! Há duas regras que se encontram no Antigo Testamento, e que não resisto a recordar: "Não faças aos outros o que não queres que te façam a ti" (Regra de Prata); "Faz aos outros o que queres que te façam a ti" (Regra de Ouro).


Este Mundo é suficientemente grande para todos nele vivermos com dignidade. É por demais sensível e evidente o contributo que os imigrantes dão à Europa e a Portugal, em particular. Não esqueçamos, que as sociedades europeias e ocidentais em geral, são sociedades envelhecidas e com uma taxa de natalidade negativa, de modo que um conjunto de actividades que a sua presença consegue garantir. Basta olhar para os campos do nosso Alentejo ou para tantas obras da construção civil...

Creio que todos devemos fazer um esforço de acolhimento e de integração, que deve ser recíproco, a bem duma convivência e multiculturalidade, que a todos pode enriquecer e é uma das vantagens da Globalização.

6. Acolher sem Proselitismo
Num País em que existe separação entre Estado e Igreja, o Estado deve criar e garantir as condições para que todos os cidadãos possam viver segundo a sua consciência, professando a sua Religião sem obstáculos, nem favorecimentos.

A fé não se impõe, propõe-se, e cada um deve ser livre de viver de acordo com as suas convicções, quaisquer que elas sejam, sem ser forçado a mu­ dar, para poder beneficiar de apoios, neste caso da Igreja Católica. Tudo aquilo que a Igreja faz, deve fazê-lo sempre motivada pela pura gratuidade e pelo amor desinteressado ao próximo, sem proselitismo, como Jesus fez. Este é também o legado que um Santo Alentejano, chamado S. Joao de Deus, nos deixou na sua célebre frase: "Fazei o bem, irmãos". Foi isso que ele procurou fazer ao longo da sua vida, e continua presente na Ordem que lhe deu continuidade, bem como em tantas instituições da Igreja, espalhadas pelo Mundo.

É este também o exemplo que todos os dias o Papa Francisco nos dá, desafiando a Igreja e os cristãos a seguir pelo mesmo caminho.

7. Globalizar a Liberdade de Religião: reciprocidade
Era bom que a liberdade de Expressão e de Religião se globalizasse e tornasse realidade em todos os Continentes, Países e Regiões, o que, infelizmente, ainda não acontece. Os cristãos são hoje o grupo religioso mais perseguido e ameaçado, devendo muitos deles viver anonimamente a sua fé, ou tendo de fugir, para salvarem as suas vidas e das suas famílias. Lembremos, por exemplo, a situação de Asia Bibi, no Paquistão, e dos milhões de cristãos que vivem silenciados na Arábia Saudita, sem templos, nem símbolos, acossados por uma Polícia Religiosa, que actua com total impunidade. E que dizer dos cristãos da Coreia do Norte, cujo número é desconhecido, e da China, onde as perseguições continuam, nomeadamente contra os cristãos da Igreja das "Catacumbas", pela sua fidelidade ao Papa. Pensemos ainda na Nigéria, onde milhares de cristãos têm sido mortos, numa tentativa da sua expulsão deste que é o mais populoso país africano, no qual metade da população (que ultrapassa os 200 milhões de habitantes) é cristã. Situação semelhante encontra-se na Somália, no Sudão e num sem número de países.

Infelizmente, também nos países europeus e ocidentais, se assiste a uma perseguição mais ou menos velada contra os cristãos, os seus símbolos e valores, curiosamente, ao abrigo da liberdade de expressão. Com efeito, assistimos hoje a um laicismo militante que, usando uma parafernália de meios, persegue e condena quem é dissonante e não alinha pelos seus critérios e agendas. A privatização da fé, relegada para a esfera da "sacristia", é uma tentação perigosa de algumas democracias ocidentais. A Democracia é um regime que se deve pautar pela tolerância e pelo respeito das legítimas diferenças entre os cidadãos que compõem o tecido social, os quais devem, em liberdade e responsabilidade, fazer as suas escolhas e viver de acordo com a sua consciência.

8. Uma única Família, numa Casa Comum
Num Mundo em que a globalização é um dado incontornável e no qual as nossas sociedades são, cada vez mais, multiculturais, multirraciais e multirreligiosas, é preciso cultivar o respeito pelo outro, o diálogo, a tolerância e a liberdade, para que todos possam viver de acordo com a sua consciência, e alterar as suas opções religiosas ou outras, se assim o desejarem, sem receio de vir a ser perseguidos e/ou discriminados. Este espírito deve ser uma imagem de marca do Mundo Novo que todos somos chamados a construir, e a que o Papa Paulo VI chamava: "A Civilização do Amor".

Manuel António Guerreiro do Rosário
Padre