sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Ser Pessoa, Não uma Coisa


É voz comum lamentar-se a ausência valores, afirmar-se que estamos a caminhar não se sabe para onde, que a actual crise é uma crise civilizacional, e até se traçam cenários catastróficos (a manterem-se inalteráveis algumas variáveis) para Portugal, para a Europa e para o Mundo. É também vulgar ouvirmos falar da pessoa humana, da sua dignidade e dos seus direitos, em grandes parangonas.

No meio de todas estas considerações e confusões, creio que importa, com discernimento, perceber que tem de haver uma hierarquia de valores, sob pena de cairmos na anarquia total, que não sei se convém a alguém...

Como pessoa e como cristão, para mim é evidente que o primeiro valor a ter em conta é o ser humano, a pessoa humana. Esta, parece, pois, ser uma questão central com que temos de nos confrontar: O ser humano é ou não o centro das nossas sociedades e dos nossos projectos?

Se estivermos atentos e com o sentido crítico desperto, é fácil perceber que, muito do que se diz sobre o ser humano, não é mais do que mera retórica e dialéctica porque, na prática, nem todos os seres humanos são tratados de igual forma, e quantas vezes a sua dignidade e direitos são postos sob condição, ficando secundarizados no confronto com outros valores ou pseudovalores, que se lhe antepõem e sobrepõem.

Apesar de sabermos tanto sobre o homem, talvez nunca como hoje os atentados à sua vida e à sua integridade foram tão dissimulados e tão disseminados. Importa, por isso, dizer convictamente e com clareza que o ser humano não é uma coisa, não é propriedade de ninguém, não é descartável, não é um meio para, nem muito menos um número. Vale por si mesmo, independentemente da idade, da saúde, da cor da pele, da cultura, da raça ou da religião, e da sua aparência.

Não podemos também fazer dele e das instituições em que se integra, família incluída, uma cobaia, porque as consequências dos erros cometidos pagam-se caro e levam gerações a ser superadas. Lembremos por exemplo, Hiroshima e Nagasaki e os erros cometidos pelas ideologias, nomeadamente o Nazismo. Lembro a este propósito que a ONU declarou o dia 27 de Janeiro, Dia Internacional do Holocausto, para que a humanidade nunca mais esqueça a barbárie cometida por seres humanos contra outros seres humanos. Erros destes não podem ser repetidos, pois estaremos a pôr em causa o futuro e a própria continuidade da espécie humana.

Se me permitem os nossos leitores, gostaria de vos dizer que a Igreja, a propósito da actual crise, tem insistido muito em que ela não é apenas económica e financeira, mas também antropológica e de valores, e daí a sua importância e as consequências tão nefastas e preocupantes, em todos os sectores da vida das nossas sociedades. Por isso, os últimos Papas têm insistido na centralidade do ser humano em todos os processos e projectos, ao ponto de afirmarem que, no campo do desenvolvimento, nenhum merece realmente esse nome, se for feito contra ou à margem do ser humano. O verdadeiro desenvolvimento, disse o Papa Paulo VI na Encíclica "Populorum Progressio", deve ser "do homem todo e de todo o homem". Esse é o coração da mensagem cristã, mesmo quando os membros da Igreja se esquecem e defendem outras prioridades que não as de Cristo e do seu Evangelho, onde a centralidade da pessoa humana é inquestionável.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
in Ecos de Grândola, nº 262, 14 de Fevereiro de 2014