sábado, 12 de fevereiro de 2022

Vencer o individualismo, globalizar a solidariedade


Os tempos que atravessamos, fruto não só da pandemia provoca­da pelo COVID, mas de outras pan­demias igualmente nefastas, desa­fiam-nos à criatividade, à ousadia, a atitudes fracturantes, que nos permitam vencer erros do passado e encarar com esperança o futuro, que somos convidados a construir, já e agora,  com atitudes e apostas concretas.

Uma vez que estamos a viver uma situação, sem precedentes, que questiona as nossas seguranças e formas de vida, era bom que, vencida a crise, saíssemos reforçados e melhores enquanto pessoas, insti­tuições, empresas, países, etc.

Na verdade, talvez nunca como hoje percebamos tão bem, que de vemos estar unidos, apesar das justas diferenças que nos caracterizam e distinguem, na procura de respostas aos muitos desafios, os quais provam que "a unidade faz a força", e que, por isso mesmo, precisamos de refrescar a memória, ultrapassar preconceitos e assumir posturas novas e audazes.

Esta é uma das lições que deveríamos retirar desta provação a sua superação com efeito, supõe a vitória e, consequente libertação, das cadeias da indiferença, do indivi­dualismo, do egoísmo, do isola­mento e da autossuficiência. Só assim poderemos encontrar, e posteriormente globalizar, as respostas que, como Humanidade, devemos dar aos problemas que sentimos e que confirmam a realidade da interdependência.

A consciência de que somos uma única Família Humana, que habita numa única Casa Comum, deveria ganhar ainda mais raízes no nosso coração, nas nossas convicções e políticas, quer se trate do simples cidadão, quer, com maior razão, daqueles que tem nas suas mãos maiores responsabilidades governamentais e decisórias.

Temos a nosso favor; como nunca antes aconteceu, as redes e outras novas autoestradas da comunicação, que nos podem e devem ajudar a conhecermo-nos melhor, para vencermos preconceitos, dialogarmos mais eficazmente, estabelecermos relações mais sólidas, e construirmos soluções mais justas e equitativas para toda a Família Humana.

Nos anos 60 o grande Papa João XXIII , na Carta Encíclica Pacem inTerris (11 de Abril de 1963) propunha quatro pilares para a construção de sociedades capazes de vencerem as guerras e gerarem  um autêntico desenvolvimento, a saber: Justiça, Verdade, Liberdade e Amor.

Este documento foi o primeiro da Doutrina Social da Igreja, a ter também como destinatários, "os homens e as mulheres de boa vontade". Esta inclusão ajudou a superar desconfianças e a fortalecer na Igreja a convicção de que todos, independentemente das nossas crenças, somos convidados a envolver-nos na construção do Mundo em que vivemos e na defesa do Homem, "real, concreto e histórico" (João Paulo II) porque, um Mundo melhor é possível e está nas nossas mãos.

in Ecos de Grândola, nº 343, 13 de Novembro de 2020


sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022

O que é a conversão?


Muitas vezes dou comigo a reflectir sobre o real significado da conversão?!

Se olho para o Novo Testamento, não tenho dúvidas de que ela implica uma autêntica e radical mudança de vida naqueles que se encontram com Jesus. Basta ler os relatos do chamamento dos primeiros Discípulos, de Mateus, de Zaqueu, da mulher adúltera, de Paulo, da vida dos primeiros cristãos e comunidades. É impossível ficarmos indiferentes perante a força e a verdade que emana destes textos!

A história da Igreja também está cheia de testemunhos admiráveis de vidas renovadas, porque iluminadas pelo encontro com o Ressuscitado: S. Francisco de Assis, Santo António de Lisboa (e Pádua), Sto. lnácio de Loyola, Santa Teresa de Ávila, Santa Teresa do Menino Jesus, Santo Afonso Maria de Ligório, etc. A lista é interminável e está sempre a ser actualizada,, tais as maravilhas que o Senhor contínua a operar naqueles que chama, para que sejam luz, sal e fermento no Mundo(cf. Mt 5, 13-16).

É claro que, em dois mil anos de­ história do Cristianismo, nem tudo é luz e santidade, obvia­mente; mas, como diz Jesus no Evangelho "uma árvore boa deve dar bons frutos" (çf. Mt 7, 17-20), e, pelo Baptismo fomos enxertados em Cristo para nos tornarmos "árvore" boa, e podermos dar bons frutos. Contudo, isso só acontecerá se, como diz S. João, permanecermos intima­mente "unidos a Ele" (cf. Jo 15, 4-7). E esta é uma questão essen­cial: Ser cristão, sem permanecer unido a Cristo, é como ser ramo separado da árvore, é viver à deriva, ao sabor dos ventos e das marés, confiado apenas na nossa intuição e força; e o resultado só poderá ser, como dizia o "bom Papa" e Santo João XXIII, nos anos 60, "o divórcio entre a fé e a vida dos cristãos", na sua opinião, o maior escândalo dos nossos tempos!

Volto novamente à razão de ser deste texto: a conversão. Creio que há um abuso na sua utili­zação. Deixo, pois, algumas das muitas interrogações que se me têm colocado:

* Como se pode falar de con­versão, insistindo na nossa condição de pecadores, mas não se dá um passo em frente, com a ajuda da graça divina, para se mudar efectivamente de vida? Será que cremos firmemente na redenção que Cristo operou na Sua morte por nós e na vida de ressuscitados que n'Ele já vivemos?

* Como pode haver conversão, quando não brilha o "esplendor da Verdade" (e só ela liberta) na nossa vida, e os fins justificam os meios, sendo visíveis, tantas vezes, os sinais de estratégia de conquista e domínio, em certas estruturas da Igreja, lobbies de poder que escandalizam os corações simples e afastam da verdadeira comunhão eclesial?

* Como pode acontecer conver­são, quando entre o que se diz e o que se faz não há coincidência, nem consequências, e tudo con­tinua na mesma, querendo dar impressão de ser essa a vontade de Deus, e nós mera ocasião para que Ele actue?

* Como se pode falar de con­versão, quando o serviço, a simplicidade, a pobreza, a partilha e a transparência são ilustres desconhecidas?

* Como se pode falar de conversão, quando, em certos ambientes clericais/eclesiais, como tantas vezes nos lembra o Papa Francisco, imperam a intriga, a maledicência, o orgulho, o ciúme e a inveja?

* Como se pode falar de con­versão, quando não há frutos visíveis de crescimento e renovação na comunidade cristã, e a estagnação e a manutenção se tomam norma, ano após ano, apesar de sucessivos Planos Pastorais?

Não esqueçamos que só há uma pessoa em nós, seres humanos onde o Espirito Santo é a alma da nossa alma, pelo que, a verdadeira conversão tem de vir de dentro para fora; como afirma S. Paulo, o indicativo torna-se imperativo, ou seja, a fé deve frutificar para ser autêntica, pois, como dirá S. Tiago, uma fé sem obras "é morta" (cf. Tgo 2, 26). Creio que cada um de nós cristãos, a começar por mim, deve­ríamos ser muito mais críticos e criteriosos no uso das palavras, para que elas não se tornem rotineiras e insignificantes, estéreis e vulgares, perdendo todo o seu sentido e força.

Falemos menos, dêmos mais atenção aos frutos que atestam a qualidade da árvore, não bus­quemos justificações, e, sobretudo, peçamos ao Espírito Santo que faça tremer os alicerces da Igreja, das nossas Comu­nidades, Semínários e Casas Religiosas, Serviços e Movi­ mentos, porque Ele é o autêntico e fundamental caminho e agente da verdadeira conversão e renovação na Igreja.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
08 de Julho de 2021

No rescaldo da Páscoa


Já o referi noutros textos, que devemos ser mais pascais, não porque seja moda, ou o Papa Francisco a isso nos exorte, mas simplesmente porque ser cristão, é ter a consciência clara de que a Igreja ou é pascal ou não é Igreja!

A Páscoa é sinal da absoluta novidade do Evangelho, que não se confunde com uma mera doutrina humana de bem-fazer, ou com uma "multinacional de filantropia", ou uma "ONG" ,diria o Papa Francisco. Não, a Igreja é muito mais do que isso, ela é autenticamente um milagre vivo, pois, apesar dos erros e dos pecados dos seus membros, ao longo destes dois milénios, o Senhor não desiste dela e não cessa de a exortar à conversão, renovando-a, enriquecendo-a de santos em cada época, de obras maravilhosas, de carismas inovadores, e de desafios emergentes dos novos campos de evangelização.

Creio que muitas vezes nós cristãos corremos o risco de fazer tábua rasa do Evangelho, quando nos esquecemos (deli­beradamente ou não o Senhor o saberá) do convite que o Ressuscitado nos faz, a que O sigamos, nos desprendamos daquilo que não é essencial, nos despojemos das pompas e dos privilégios do "glorioso" (dizem os saudosistas) passado, e acolhamos o desafio do presente. Viver agarrado ao passado é, aliás, pecar contra o Espírito Santo, que não desceu apenas sobre aquela comunidade reunida em oração no dia de Pentecostes. mas continua criativamente actuante, em cada época, na prossecução do projecto de salvação que o Pai tem para toda a Humanidade, e que Jesus veio inaugurar. O Mundo não pára e se nós pararmos no tempo, com saudades das "cebolas do Egipto", (cf. Nm 11, 4ss), ficaremos reduzidos à insignificância, qual seita que ninguém leva a sério.

Como afirmou o nosso Papa e Santo João Paulo II: "a via da Igreja (porque foi a via de Cristo) é o Homem real, concreto, histórico". (cf. RH 13) Este Homem vive num Mundo que é obra de Deus e onde Ele continua vivo e actuante. A lgreja não deve, por isso, ter medo de se envolver no Mundo, à maneira de Jesus, que não excluía ninguém, mas antes procurava, sobretudo, as "ovelhas perdidas" (cf. Mt 9,35-10,1.6-8), pois são essas que, por estarem doentes, mais precisam do Médico Divino. O nosso Mundo, como diz o Papa Francisco, necessita de uma Igreja que seja um autêntico "Hospital de Campanha", e de sacerdotes com "cheiro a ovelha", ou seja, pastores que tenham por modelo o único e verdadeiro Pastor, que veio para "servir" e "não para ser servido" e "dar a vida" (cf. Mt. 20,28). Não fiquemos insensíveis, sobretudo os jovens, às necessidades de tantas comunidades, dentro e fora da nossa Diocese, que necessitam de pastores como de pão para a boca. Não bastam belos discursos e esquemas pastorais cozinhados em "labo­ ratório", se faltarem jovens que queiram arriscar a vida por Cristo na Igreja, entregando-se sem calculismos nem projectos de promoção pessoal ou de grandeza. Vale a pena seguir o Senhor e entregar-Lhe a vida, pois, como Ele próprio disse: "quem perder a vida por mim...ganhá-la á" (cf Lc 9,22-25).

No rescaldo da Páscoa, vivida ainda sob as limitações da pandemia, peçamos ao Senhor que envie em abundância sobre a Igreja e sobre cada um de nós cristãos, na diversidade das vocações, o Espírito Santo em torrente, para que a nossa conversão não seja mero estribilho que cansa e não convence, mas seja, na verdade, uma realidade evidente, indiscutível, que contagie naturalmente quem procura a Deus e também por Ele é procurado.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
3 de Junho de 2021










Páscoa, coração da fé cristã



O tempo da Quaresma que estamos a atravessar. e que desagua na Páscoa, seu delta natural, desperta habitualmente em mim algumas perguntas, que não resisto em deixar no ar: O que é que distingue e acrescenta à nossa existência o facto de acreditarmos em Jesus? Que testemunho damos nós cristãos da nossa fé, diante daqueles com quem nos cruzamos em casa ou na vida? Se o Evangelho é Boa Notícia e Jesus é esta Boa Noticia personificada, porque nos falta coragem, audácia e desassombro, para vivermos alegremente a nossa condição de cristãos?

Às vezes, dá a impressão que ficámos estacados ao  da Cruz. ou à porta do Sepulcro, expectantes. Outras vezes, parece que nos limitamos a contemplar o Cristo crucificado, sem descobrir que Ele não ficou cravado na Cruz, mas está vivo, e a força Sua vitória sobre a  morte deveria transformar-nos como aconteceu com os Apóstolos, os discípulos, e todos aqueles que se encontraram com o Ressuscitado.

A ressurreição é, com efeito, o acontecimento fundante da cristã e, todavia, parece que ainda não lhe reconhecemos essa centralidade nas nossas vidas.  a impressão que nós cristãos, eu incluído, somos, não raro, pouco "pascais": falta-nos descobrir em profundidade o significado e as consequências da Ressurreição de Cristo; e, contudo, se Ele não tivesse ressuscitado, vã seria a nossa fé, diz S. Paulo (cf. 1 Cor 15, 17).

A cristã é. dizia o Papa Bento XVI, essencialmente um "encontro", entre nós, seres humanos, e o Senhor ressuscitado; um encontro que deveria mudar-nos por dentro e produzir em nós frutos de vida nova, qual enxerto, como diz S. Paulo: de "oliveira mansa em oliveira brava" (cf. Rom 11, 17).

É verdade que não somos santos e infalíveis, mas pecadores, e todos feitos da mesma massa, mas, não é menos verdade que em Cristo fomos adaptados como filhos de Deus, recebemos uma vida nova, somos por Ele amados, ao ponto de ter dado por nós a Sua Vida. Como o amor quer ser amado, disponhamo-nos a segui-lO, pedindo-Lhe que nos converta, de verdade, e não apenas teoricamente, para podermos dar, com a Sua Graça e como Ele espera, frutos de santidade neste Mundo, que necessita de Deus, apesar de nem sempre o assumir, procurando encontrar sucedâneos, cujas respostas acabam por ser insatisfatórias. Com efeito, sem Deus o ser humano continuará a ser um mistério sem resposta às questões essenciais da sua vida, as quais radicam no fundo do seu coração. o Ressuscitado, porque se fez um de nós, nos pode verdadeiramente entender, e colmatar o vazio que em nós existe.

A Páscoa que se avizinha exorta-nos, pois, a estarmos mais atentos aos sinais de tantos homens e mulheres que buscam au­tenticamente Deus e um sentido para as suas vidas. A nossa missão, enquanto cristãos, apesar das limitações impostas pela pandemia, é, pois, imitarmos a primeira comunidade apostólica, que nos legou em herança o tesouro da fé, e, como ela, darmos testemunho da nossa condição de filhos da Luz (cf. Ef 5,8). porque, em Cristo ressuscitado, temos a certeza que a Luz é mais forte do que as trevas.


Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário

01 de Abril de 2021



quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Quaresma: caminho a trilhar


Iniciámos há dias a Quaresma tendo como horizonte e objetivo a Páscoa. Para lá chegar, e para esta não seja apenas mais uma Páscoa, é necessário viver com criatividade e intensidade estes dias, valorizando os meios, nomeadamente aquele tripé, que a Igreja na sua milenar sabedoria nós propõe. Não vou repeti-los, pois são por demais conhecidos. Procuremos utilizá-los criteriosamente, para que dêem fruto na nossa vida pessoal, familiar, paroquial, ou diocesana.

A Quaresma deste ano, contudo, reveste-se de características próprias, pelo facto da actual pandemia que nos assola, se ter intrometido nas nossas vidas, alterando e condicionando quase tudo. Todos sentimos na pele as limitações que nos foram impostas, e que, para bem de todos, devemos acolher e procurar cumprir, inclusive a suspensão de direitos, alguns dos quais exigiram tempo e esforços na sua conquista, mas são hoje um dado adquirido. Sabemos, porém, de antemão que esta é uma situação transitória.

Talvez este facto, porém, nos ajude a tomar consciência de quanto sofrimento existe no nosso Mundo, quando povos inteiros estão privados dos seus direitos mais inalienáveis, um dos quais a Liberdade. Basta estarmos atentos à comunicação social e às redes sociais, para percebermos que a libertação de que a Páscoa é um sinal maravilhoso, ainda tem um longo Êxodo pela frente, em vastas regiões do planeta Azul, pois, uma parte significativa da Humanidade não vive em democracia, não podendo votar (nós podemos e, quantas vezes, abdicamos deste direito/dever), nem manifestar-se livremente, sob pena de arriscar a segurança, ou a própria vida.

Aquele grito do Papa e Santo João Paulo TI ao ser eleito: "abri, escancarai as portas,... o coração a Cristo", ainda precisa de abater muitos muros, até se tomar realidade, em praticamente todos os Continentes, onde, de uma forma ou de outra, as ditaduras e a ditadura do Ter, do Poder e do Parecer, continuam a imperar, a esmagar, e a escurecer o quotidiano de tantos homens mulheres, irmãos nossos.

Não fiquemos indiferentes perante este cortejo interminável de sofrimentos, antes pelo contrário, acolhamos o desafio de romper as cadeias do egoísmo, do espiritualismo desencarnado, da tentação sectária, de­ nos fecharmos no nosso pequeno mundo, esquecendo que, para a Igreja, como nos disse o nº 1 da Constituição GaudimetSpes, do Concílio Vaticano II: "não há realidade alguma verdadeiramente humana que não encontre eco no seu coração".

Procuremos, por isso, nesta Quaresma ter presente na nossa oração esta multidão inumerável de pessoas, para quem Cristo também veio, para os libertar das cadeias do pecado, do mal e da morte. Unamos à oração a acção, numa cadeia universal, sem discriminações, para que possa acontecer Páscoa, e a liberdade, não apenas interior, mas também física, política, de expressão possa fazer parte do nosso património comum, quer vivamos no Norte ou no Sul, no primeiro, segundo, terceiro ou quarto Mundos.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
25 de Fevereiro de 2021

Viver o Evangelho com desassombro



Entre os dias 18 e 21 de Janeiro, o Clero das Dioceses de Évora, Beja e Algarve, viveu uma experiência ex­traordinariamente enriquecedora e desafiante: a Atualização Interdiocesana. Este ano, devido à pandemia e através da plataforma Zoom.

Apesar de lhe faltar a dimensão do encontro humano e do convívio, das celebrações e de toda a envolvência das últimas Actualizações, que têm tido como palco o Hotel Alísios, em Albufeira, foi esta a forma possível de não perdermos uma ocasião formativa única, considerada exemplar a nível nacional.

Ao escutar as reflexões profundas dos oradores, as experiências que nos comunicaram, e os desafios que nos lançaram, forçoso é concluir que temos necessidade premente de formação, para melhor podermos servir aqueles a quem somos enviados, e para que não se extinga em nós aquela salutar insatisfação, que nos faz querer ir sempre mais longe. Tinha razão o Filósofo Sócrates ao afirmar: "eu só sei que nada sei". É preciso, pois, estar aberto à novidade, e, sobretudo, ao Espírito Santo que nos vai surpreendendo, abrindo sulcos, rasgando clareiras. e conduzindo-nos por novos caminhos, quando tudo parecia obscuro, inseguro e duvidoso.

A partir de algumas intervenções foi possível traçar uma espécie de retrato do Homem hodierno, o qual aparece como alguém que recusa e se afasta de uma Igreja rotineira, carreirista, autoritária, moralista, ausente e distante da vida real. Contudo, noutros inquéritos e estudos de opinião, este mesmo Homem também se revela desiludido e cansado com os deuses que lhe propuseram, qual el Dorado de falsas e ilusórias seguranças, que se têm vindo a revelar enganadoras. O resultado, só poderia ser desilusão e mais vazio. Permanece, porém, nele o desejo profundo de autenticidade, de verdade e de sentido. Com efeito, ele continua a ser "um animal religioso", um buscador que procura Deus, mesmo que O não encontre nas formas tradicionais de organização religiosa.

É verdade que este Homem não se satisfaz com "mais do mesmo" e, não o esqueçamos, há hoje muitas outras propostas para além do Cristianismo. O Homem hodierno com as suas inquietações, constitui um autêntico desafio à Igreja e pode mesmo ser interpretado como um verdadeiro Sinal dos Tempos, e quiçá, um desafio à conversão, e à renovação, acolhendo as moções do Espírito Santo, verdadeiro motor da vida e acção da Igreja.

A renovação supõe voltar sempre às origens, e redescobrir a força transformadora do Evangelho, como no-lo confirma a vida das primeiras comunidades cristãs e o testemunho de multidões de homens, mulheres, jovens e crianças, ao longo dos séculos.

A Igreja acredita e o Concílio Vaticano II afirmou-o, há 50 anos: só Cristo pode encher de pleno sentido a vida do Homem, e responder às perguntas mais profundas do seu coração. Por isso, é preciso anunciá-l'O, com desassombro, em palavras e obras. Numa palavra, como disse o nosso querido Papa e Santo João Paulo II, no Jubileu do ano 2000, é preciso abandonar uma certa "mediocridade de vida", e "aspirar à santidade".

O Papa tinha como destinatários principais das suas palavras os jovens, mas elas podem bem ser propostas a toda a Igreja e a todos na Igreja. Acolhamo-las, para que elas dêem fruto na nossa vida e no Mundo em que vivemos.

Pe. Manuel António do Rosário
28 de Janeiro de 2021

Fortalecer, viver e propor o espírito de Natal


Uma das missões que como cristãos devemos assumir, em cada Natal, e neste Natal concreto que se aproxima, consiste em trabalhar para que não se perca, nem desvirtue, o seu verdadeiro sentido: nascimento do nosso Salvador, Jesus Cristo, Filho de Deus, que assumiu a nossa humanidade, para nos elevar à condição de filhos de Deus, filhos no Filho (Cf. Gal 3,26), e irmãos.

Natal é, pois, a Festa da nova Humanidade e da Fraternidade Universal, que Jesus veio instaurar, convidando-nos a ser "homens novos", dirá S. Paulo, com um coração novo, não de pedra, mas moldado pelo Espírito Santo, que quer gravar em nós a nova Lei do Amor. Contudo, para sermos homens novos, precisamos de transformar as "espadas em relhas de arado e as lanças em foices" (Cf. Is 2,4); pois, se nada mudar na nossa vida, este será apenas mais um Natal, diferente pelos condicionalismos a que nos relegou a pandemia, mas sem mais nada que o distinga e caracterize.

Este tempo convida-nos a quebrar rotinas, a descentrarmo­ nos de nós próprios, a abrirmo-nos ao absolutamente Outro, deixando-nos surpreender e desafiar por Ele, que nos quer inundar com a Sua presença e o Seu amor, convidando-nos a gue embarquemos com Ele, sem temor. Na viagem da nossa vida, temos a certeza de que não estamos sós, Ele é o Emanuel, Deus connosco, que nunca nos abandona, que se faz nosso companheiro de jornada, como fez com os discípulos de Emaús, para preencher de luz, sentido e verdade a nossa vida, respondendo às perguntas mais pertinentes, inquietantes e significativas, que se colocam ao coração humano ao longo da sua caminhada existencial.

O Menino nascido em Belém, não se cansa de insistir connosco, que o amor a Deus se prova no amor ao próximo, e o amor tem muitos nomes, tal como o próximo. Por isso, não fiquemos apenas pela vivência interior do Natal, prolonguemo­-lo e enriqueçamo-lo com gestos de partilha, de amor feito pão, de generosidade, de paz e reconciliação, confiando que, se fizermos a nossa parte, o Senhor tornará possível aquilo que está acima das nossas forças, porque Ele é o Deus dos impossíveis.

O Natal lembra-nos, pois, que há tanto bem para fazer, mesmo de forma discreta e simples, que não podemos nem devemos ficar parados, indiferentes, inertes. Ele é ainda convite a que partamos ao encontro do outro, quer ele seja desconhecido e habite lá longe, num qualquer fuso horário, ou viva no outro lado da nossa rua, numa casa a cuja porta passamos tantas vezes, sem que dele nos tenhamos apercebido.

Acolhamos também os apelos que o Papa Francisco nos faz, a que respeitemos o equilíbrio da nossa Casa Comum, contribuindo para um justo desenvolvimento, evitando poluir e destruir este património comum, muito dele irreparável, optando por um estilo de vida mais simples e frugal, que exclua o desperdício, e abandonando atitudes egoístas e misantropas, que não servem a ninguém e só fazem aumentar o fosso entre ricos e pobres; Norte e Sul, Ocidente e os outros; G20 e G0. Se não pudermos mudar o Mundo, que, pelo. menos, neste Natal, a nossa vida seja um livro ainda mais aberto, onde o Senhor possa escrever, connosco, mais um belo capitulo da Civilização do Amor (Santo Paulo VI), que se iniciou há 2000 anos com o nascimento do Menino-Deus, que é possível estabelecer entre nós seres humanos, e terá o seu epílogo no final dos tempos.

Um santo Natal e um abençoado Ano Novo, sob a protecção de S.1osé, nosso Padroeiro e Modelo a imitar.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
24 de Dezembro de 2020

Há palavras que correm o risco de se tomarem chavões, vulgarizando-se, esvaziando-se de sentido, caindo na banalidade, quase insignificância. Na Igreja, uma dessas palavras é a Pastoral, abreviatura de acção pastoral.

Para começar, arrisco uma das possíveis definições: "Ação pastoral (católica) ou simplesmente pastoral é a ação da Igreja Católica no mundo ou o conjunto de atividades pelas quais a Igreja realiza a sua missão, que consiste primariamente em continuar a ação de Jesus Cristo. A palavra ''pastoral" deriva de pastor, que era um elemento constante no mundo bíblico." (Wikipédia)

Sem pretender aprofundar esta definição, decerto incompleta, gostaria, contudo, de recordar que a Pastoral é uma Ciência Teológica (teórica e prática), exige a Fé, mas também a Razão, através do recurso a um conjunto de ciências humanas e sociais que nos podem ser de grande utilidade (como por exemplo a Sociologia). No geral, divide-se em três áreas, que se completam: Pastoral Profética, Pastoral Litúrgica e Pastoral Sócio-Caritativa. Passando a questões mais concretas, creio que o desafio que muitas vezes nos é colocado na Pastoral, consiste em encontrar o equilíbrio entre a dimensão humana e a divina. Na verdade, precisamos de pensar, programar, definir estratégias, avaliar. Não devemos, porém, esquecer que a obra não é só nossa, nem depende só da nossa acção; pelo contrário, devemos pedir ao Senhor que envie sobre nós o Espírito Santo, para que seja Ele o verdadeiro motor da pastoral. Se assim não fizermos, corremos o sério risco dos projectos pastorais serem mero fruto dos nossos calculismos e estratégias, e não da Vontade de Deus; e a Igreja poderá vir a tomar-se, como nos previne o Papa Francisco, uma ONG, ou uma Multinacional de filantropia.

A verdadeira Pastoral exige pastores que tenham como modelo Jesus. o Bom Pastor; que não se pastoreiem a si próprios, mas antes dediquem a totalidade das suas vidas ao serviço daqueles que lhes foram confiados, não descansando enquanto não encontrarem também os transviados, marginalizados e indiferentes. Como o Mestre, devem fazer uma grande festa quando os encontram.

A este propósito, seria bom que todos os pastores lêssemos e reflectíssemos nas catequeses que Santo Agostinho escreveu, dirigindo-se a nós pastores, São fortes e interpelativas estas palavras, daquele grande pastor, um verdadeiro modelo a seguir. Não esqueçamos que o apelo à conversão, não pode ser apenas para os outros: nós devemos estar na primeira linha, disponíveis ao Espírito Santo. Não fiquemos confinados nas nossas seguranças.

A Pastoral, contudo, não se resume à acção dos pastores; ela supõe igualmente o compromisso dos cristãos leigos, os quais devem evitar a tentação da clericalização, refugiando-se dentro dos muros da Igreja. A sua missão, implica, com efeito, "sujar as mãe no Mundo", ou seja, levar a cabo a evangelização das realidades seculares, para que nelas sejam visíveis os sinais do Reino de Deus.

É vulgar dizer-se que a Igreja precisa de pastores. Creio que é mais evangélico dizer, que são necessários bons pastores; pois, um pastor que perdeu o ardor missionário, funcionalizando-se, não entusiasma os mais jovens e dificilmente encontrará quem lhe suceda na missão. Não é menos verdade, que necessitamos de bons cristãos, que vivam a alegria de o ser e que contagiem, pela verdade do testemunho, todos quantos os rodeiam.

No rescaldo dos 250 anos da Restauração da Diocese de Beja, olhemos para a realidade da Igreja que somos, para os frutos que produzimos, pois "pelos frutos se conhece a árvore", e perguntemos ao Senhor o que é que Ele quer de nós?! Não tenhamos medo de nos questionarmos, e de arriscarmos em apostar em caminhos de renovação, para que possamos ser de verdade a Igreja que Jesus quer para este Alentejo, no Século XXI.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
03 de Dezembro de 2020

Evangelizar, tarefa primordial da igreja


A Igreja que peregrina neste Mundo é uma comunidade formada de gentes, em demanda da Terra Prometida, que tem na evangelização uma das suas tarefas primordiais, na fidelidade ao mandato recebido de Jesus.

Nesta missão a Igreja deve recorrer a todos os meios que potenciem o anúncio do Evangelho, e, por isso, os mass media e as redes sociais, ocupam hoje uma centralidade indiscutível. Contudo, como nos lembrava o Papa e Santo Paulo VI, na Exortação Apostólica Evangelii Nuntiandi (EN, 1975), nada substitui o contacto pessoal, a relação humana, no fundo, o testemunho (Cf. nn.45 e 46).

A afirmação deste clarividente Pontífice ap1ica-se a todas as áreas da actividade pastoral, mas há uma que tantas vezes tem sido descurada e que importa recuperar e valorizar. Como a clareza, a acuidade e a profecia, foram características distintivas do Papa timoneiro do Concilio Vaticano II, passo-lhe a palavra, citando o nº20 da EN:

(...)importa evangelizar, (...) de maneira vital, em profundidade e isto até às suas raízes, a civilização e as culturas do homem, (...) a partir sempre da pessoa e fazendo continuamente apelo para as relações das pessoas entre si e com Deus. O Evangelho, e consequentemente a evangelização, não se identificam por certo com a cultura, e são independentes em relação a todas as culturas. (...) A ruptura entre o Evangelho e a cultura é sem dúvida o drama da nossa época, como o foi também de outras épocas. Assim, importa envidar todos os esforços no sentido de uma generosa evangelização da cultura, ou mais exatamente das culturas.''

A Conferência Episcopal Portuguesa, em 1995, num importante documento intitulado "Instrução Pastoral sobre as seitas, um desafio à actividade pastoral da Igreja", afirmou, na fidelidade à EN, que só se poderia evangelizar Portugal, se se evangelizasse a Cultura(Cf. n°13).

Se quisermos recuar no tempo, regressemos ao Concílio Vaticano II, o qual na Constituição Gaudium et Spes, (GS, nº 58) afirmou que: "(...) a Igreja, vivendo no decurso dos tempos em diversos condicionalismos, empregou os recursos das diversas culturas para fazer chegar a todas as gentes a mensagem de Cristo, (...) é capaz de entrar em comunicação com as diversas formas de cultura, com o que se enriquecem tanto a própria Igreja como essas várias culturas. O Evangelho de Cristo renova continuamente a vida e cultura do homem(...)".

Para quem desejar aprofundar estas questões, proponho a leitura dos números 57 a 62 da GS, os quais constituem um verdadeiro manancial de reflexão sobre a Cultura, o respeito que ela nos merece, e a importância de não descurar nenhuma das áreas que a compõem. e que constituem um desafio permanente à missão da Igreja, que é como quem diz, de cada um dos cristãos, sobretudo, mas não exclusivamente, dos Leigos, pois, uma das suas tarefas prioritárias deve ser a "evangelização das realidades temporais". Parafraseando o Papa Francisco, creio que poderemos dizer que necessitamos de uma Igreja "com cheiro" a Cultura. A Nova Evangelização também o exige.

Pe. Manuel Aontónio Guerreiro do Rosário
26 de Novembro de 2020

Tempo de Quaresma


o percorrer o Antigo Testamento, se, por um lado, me confronto com a dificuldade de aceitar alguns textos, por outro, fico maravilhado com a profunda humanidade que brota de tantas páginas deste "livro de livros".

Na verdade, quanto mais estudo, mais se consolida em mim esta convicção: o Antigo Testamento exige a prática da justiça, como sinal da autêntica fé em Deus, com tudo o que isso implica nas relações entre seres humanos; e, sem justiça, também é vão o culto que se presta a Javé. A palavra dos profetas é especialmente dura, mesmo acutilante, quando isto não acontece, quer se trate de um membro simples do povo, de alguém das classes mais altas, ou do próprio rei. A justiça é o critério para aferir e atestar a autenticidade da fé, sem exceções.

Os prediletos de Deus são os mais fracos, merecendo especial atenção três categorias de pessoas: viúvas, órfãos e estrangeiros. Deus está sempre do seu lado, bem como dos pobres, e dos oprimidos!

Esta linha, profundamente humanista do Antigo Testamento, encontra continuidade no Novo Testamento, em especial, na vida, na ação e nas palavras de Jesus. A sua prioridade são as pessoas, e, por isso Ele encarnou; e entre estas, merecem particular atenção: os simples, os doentes, os marginalizados, os que exerciam profissões mal vistas pelo 'status quo'. É verdade que Jesus não exclui ninguém, mas os seus eleitos são prioritariamente estes, pois veio como "médico", não "para os sãos mas para os doentes".

O que acabo de afirmar coaduna-­se com o tempo que nós cristãos estamos a celebrar, e se chama Quaresma, ou seja, quarenta dias que preparam a Páscoa, o coração do ano litúrgico cristão, e pode resumir-se em três palavras: oração, jejum e caridade/amor. A mais importante é, porém, a caridade, e uma das suas expressões mais elevadas, a partilha com o próximo. Contudo, a mensagem de Jesus é clara, como no Antigo Testamento: onde não há Justiça, não existe autêntica caridade; e quem não ama o próximo, decerto, não ama a Deus.

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
in Diário do Alentejo, 26 de Fevereiro de 2021

A Paz, dom e tarefa

 

á 55 anos que o Papa Paulo VI lançou o projeto: Dia 1 de Janeiro, Dia Mundial da Paz.
Este ano o Papa Francisco, na sua Mensagem, ligou a Paz a três questões pertinentes: o Diálogo entre Gerações; a Educação; e o Trabalho.
Como não quero substituir-me aos nossos leitores, sugiro que leiam e reflitam sobre esta Mensagem lúcida, profética e interpelativa.
Pela minha parte, irei centrar-me na Paz, enquanto dom e tarefa.
A verdadeira Paz não se resume à formalidade de um documento assinado, não é moda passageira, nem mera “ausência de guerra”, como a situação que atualmente vivemos, que alguns já intitularam de nova “Guerra Fria”, nome que não traz boas recordações e deveria fazer parte de um passado a não repetir.
Em muitos contextos, infelizmente, prevalece ainda o princípio da Pax Romana: “se queres a Paz, prepara a Guerra”.
Não devia ser assim e a Humanidade já deveria ter aprendido, com os erros cometidos ao longo dos milénios da sua existência, que a Guerra nunca é caminho, nem solução. Nela todos perdem, mesmo os militarmente vencedores, pois os desejos de ódio e de vingança dos vencidos permanecem, e manifestar-se-ão logo que possível.
Para nós cristãos a Paz é um dom, que pedimos a Deus, sua verdadeira fonte, pois, Ele é um Deus de Paz, que a quer conceder a cada um de nós. Se for acolhida no nosso “coração” e aí ganhar raízes, torna-se também tarefa a cumprir, que exige o nosso compromisso, devendo refletir-se em gestos e atitudes.
É verdade que há situações que nos ultrapassam, enquanto membros da Família Humana, e não permitem a nossa intervenção direta; contudo, outras há (e são tantas) que dependem de nós, estão ao nosso alcance, fazem parte do nosso quotidiano, basta querer e dar um passo em frente.
Que este novo ano desperte em nós o desejo de nos empenharmos mais como obreiros na construção da Paz, para que ela não seja simples utopia, mas antes estímulo, desafio e missão a abraçar.
Só a Paz vale a pena!

Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
in Diário do Alentejo, 21 de Janeiro de 2022