domingo, 17 de março de 2019

Centralidade do Homem


á muito tempo, quando navegava nas águas da Filosofia como estudante, a minha atenção foi desperta por uma frase, que ainda hoje me faz refletir: "O homem é a medida de todas as coisas" (Protágoras).

Está afirmação, que pode ter muitas e contraditórias leituras, merece uma adequada hermenêutica, pois, em muitas áreas, o homem parece estar subvalorizado, esquecido, marginalizado.

Qual é o seu lugar nesta civilização materialista, hedonista, do descartável, do plástico, das redes sociais? E que dizer do desenvolvimento/progresso, e das questões ecológicas? Às vezes, tem-se a impressão que ele passou de "senhor a servo", sendo reduzido a mera variante, peça de engrenagem, obscurecido pelas coisas, pela economia, pelo dinheiro.

Quanto à Ecologia, segundo o papa Francisco, o homem não pode nela ser considerado um elemento mais, ou reduzido a mera força, energia. A autêntica Ecologia deve ser global, e o homem estar no seu centro, como agente principal, e dinamizador de uma nova consciência ecológica. Esta, exige de todos nós cuidados redobrados, critérios mais racionais, opções de médio e longo prazo na gestão desta "casa comum". Os efeitos da ausência desta consciência são por demais sensíveis em todo o planeta.

O contributo que nós cristãos podemos dar para esta nova relação com a criação pode passar também por uma nova releitura do Relato da Criação, que faz parte do Livro do Génesis (primeiro livro da Bíblia). De facto, interpretações levianas, superficiais, parecem ter criado em alguns espíritos a convicção de que o homem podia exercitar o mandato de "senhor da criação" sem limites, nem regras.


Esta nova consciência ecológica pode passar, segundo o papa Francisco, pela inclusão destas temáticas no âmbito dos pecados. Para quem não é cristão, mas procura viver na retidão da consciência, urge recuperar o sentido do bem e do mal, e exercitar o discernimento. O obscurecimento da consciência é causa de muitos males que nos afetam.


Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
in Diário do Alentejo, 15 de Março de 2019



quarta-feira, 13 de março de 2019

Democracia e Discernimento


De um modo geral, creio que toda a gente, com bom senso, preferirá a Democracia como, pelo menos, o menos mau dos Sistemas Políticos.

A Humanidade, na sua milenar história, já passou por muitas fases, sendo governada por uma parafernália de sistemas e regimes. Muitos de nós reagiremos com firmeza contra as ditaduras, a ausência de liberdades e garantias, e os sistemas claramente opressores da pessoa. Talvez não tenhamos, contudo, a mesma capacidade de discernimento quanto a certas tendências que, capciosamente, se vão introduzindo nos sistemas democráticos, impondo as suas agendas, e gerando confusão, ao abrigo do "politicamente correto", ou pior ainda, arvorando-se nos únicos e legítimos representantes da Democracia, considerando reaccionários, "fascistas", ou conservadores, todos os que não pensam como eles.

Pergunto-me, perante tais atitudes verdadeiramente inquisitoriais, se quem assim pensa e age saberá o que é aDemocracia?

Razão tinha o Papa João Paulo II ao defender, com toda a convicção, a Democracia, ele que soube bem o que era viver sob duas ditaduras, e ao afirmar que era fundamental "melhorar a qualidade da nossa Democracia". Esta, na sua génese e objectivos, é verdadeiramente nobre, elevada, e precisa de quem a sirva e não se sirva dela, porque da qualidade dos políticos resultará a maior ou menor qualidade dos Sistemas.

O Papa Francisco tem também uma convicção, muito jesuítica, que eu também considero e valorizo, que se chama Discernimento. É preciso que todos os cidadãos procurem formar verdadeiramente a sua consciência, para poderem exercer o discernimento nas variadíssimas situações da vida em que se encontrarem envolvidos. A Sociedade e a Democracia não precisam de repetidores do que outros decidem ser bom ou mau, como se houvesse cidadãos de primeira e de segunda categorias. Não, a Democracia necessita de cidadãos ativos, protagonistas, que afirmem e defendam as suas ideias, sem se deixarem anestesiar, nem muito menos comprar.

A Democracia exige também o compromisso de uma comunicação social verídica, ética e justa, que não caia na tentação de se deixar conduzir minorias, que fazem um trabalho de sapa e que, segundo, uma agenda previamente delineada, vão fazendo crescer o "joio" dos seus projectos, mascarados de "trigo", confiados na incapacidade dos cidadãos de perceberem os seus intentos e de se oporem aos mesmos.

Não nos esqueçamos, a Democracia não se esgota do ato de votar; ela supõe e exige, a presença, o compromisso e a participação de cidadãos, instituições e associações, que não desistam de influenciar os desígnios e os rumos da Sociedade.

Como também gosta de sugestivamente dizer o Papa Francisco: não tenhamos medo de sujar as mãos no trabalho!

Coragem. Compromisso. Utopia.


in Ecos de Grândola, nº 323, 08 de Março de 2019



domingo, 10 de março de 2019

Assumir os erros, mudar de rumo


esde muito que nutro pelo papa João XXIII uma imensa simpatia e uma indisfarçável admiração. Apesar de o terem considerado papa de transição, veio a tornar-se, de facto, verdadeiramente providencial. A sua visão profética e arrebatadora, e a sua audácia, permitiram-lhe conduzir a Igreja por um caminho de Aggiornamento chamado Concílio Vaticano II.

Na sua intuição, ação e documentos, palpita um amor abrasador pela Igreja e pelo mundo, que o fez justamente merecer o título de "Bom papa João". Sem me alargar muito sobre esta insigne figura, gostava de lembrar uma frase sua, oportuna para estes tempos de turbulência eclesial: "Esta Igreja Santa, de pecadores".

Com efeito, se a Igreja fosse mera instituição humana, decerto teria desaparecido, tais as perseguições, as crises, os pecados, que caracterizam a sua milenar história. Contudo, ela é de origem divina, e, por isso, tem a certeza de que Deus a não abandonará e abrirá sempre caminhos novos de conversão e renovação. Acredito, pois, que a provação destes tempos, fruto dos erros dos homens, será ocasião, se houver coragem de os enfrentar com firmeza e verdade, e ousadia de os corrigir e mudar de rumo, para uma renovação dos corações e das estruturas.

A Igreja não deve ser espaço para vidas duplas, onde a luz do Evangelho não encontra espaço para penetrar. Não pode ser refúgio de carreiristas e funcionários, a quem falta humanidade, alma, realismo, e que, tantas vezes, refugiando-se na frieza das leis, pretendem impor fardos pesados aos outros, quando eles, como diz Jesus no Evangelho, referindo-se aos fariseus, nem com um dedo os procuram levantar.

Na Igreja deve haver lugar para todos, mas é fundamental que no vocabulário e na vida de cada cristão, a conversão não seja palavra vã, mero estribilho, inócuo, e repetitivo, sem consequências existenciais. Como diz S. João: "Quem diz que ama a Deus que não e não ama o seu irmão que é mentiroso".


Pe. Manuel António Guerreiro do Rosário
in Diário do Alentejo, 08 de Março de 2019



Tempo de Quaresma, tempo de conversão



Estamos a iniciar mais uma Quaresma, tempo por excelência para mergulharmos na profundidade do nosso ser e fazermos um exame profundo à nossa vida e às múltiplas relações que a caracterizam: com Deus, com os outros, connosco próprios e com a natureza que nos rodeia.

O ser humano é um ser relacional e a avaliação destas relações, na riqueza da sua diversidade e complementaridade, ajudam­nos a prosseguir caminhos ou a retroceder, e a refazer itinerários. Creio que este é um dos méritos da Quaresma, pois, toda a atmosfera que nos envolve é aliada e convidativa a processos de introspecção.

Se nos centrarmos numa das palavras interpelativas de Jesus, talvez possamos encontrar nela pistas para uma correta vivência quaresmal: "pelos frutos, se conhece a árvore". É fácil iludirmo-nos com imagens que temos de nós, ou que outros criam em nós e de nós, sem nunca as questionarmos, e isso faz com que os anos passem e nada em nós mude, embora a nossa linguagem possa ser rica, exuberante, apelativa. Não nos deixemos iludir: palavras, leva-as o vento...

Ser cristão é trazer dentro de nós um desejo de perfeição, de santidade, que tem a sua fonte e a sua resposta unicamente em Deus. Santidade cristã não é sinónimo de perfeccionismo à maneira farisaica, nem afirmação de superpoderes, ou de lideranças carismáticas. Não, a santidade cristã é dom que se deve pedir e alimentar na fonte que é o Senhor, e na verdade que nós cristãos sabemos que nEle se encontra.

Este tempo convida-nos, pois, a todos a pesarmos bem as palavras que, qual estribilho, repetimos maquinalmente, sem nelas reflectirmos. Deixo algumas inquietações:

- Como posso falar de conversão, se em mim nada muda, ano após ano? Como posso exigir dos outros aquilo que recuso aplicar a mim?

- Como posso falar de humildade, se sou orgulhoso, altivo, prepotente, alimento invejas e rancores, e não faço nada para reparar situações que também dependem do primeiro passo que sou convidado a dar?

- Como posso falar de pobreza, de desprendimento e partilha, se vivo centrado no meu mundo, nos meus projectos e não sou capaz de dar, sem esperar algo em troca?

- Como posso falar de oração, de vida espiritual, de relação com Deus, se depois na relação com os outros é evidente o divórcio entre o amor ao Senhor e o amor ao próximo? Quais são os frutos?

- Como posso falar de verdade, de transparência, exigindo-as aos outros, quando vivo uma existência onde elas não se manifestam?

Estamos no tempo privilegiado para nos exercitarmos numa autêntica conversão e transformação da nossa vida, e para não perdermos inutilmente tempo em demagogias linguísticas, sejam, elas eclesiais ou eclesiásticas.

Prestemos mais atenção aos nossos frutos para percebermos que tipo de árvore somos, e para pedirmos ao "Agricultor Divino" que cortando aqueles ramos que nos impedem de crescer e que são obstáculo ao crescimento dos outros.

Da verdade com que vivermos esta Quaresma, dependerá a riqueza da Páscoa que se vislumbra.

R

in Notícias do Alentejo, 07 de Março de 2019