sábado, 29 de dezembro de 2012

Jesus aos 12 anos no Templo por Bento XVI

A Infância de Jesus

«Além da narração do nascimento de Jesus, São Lucas deixou-nos ainda um precioso fragmento da tradição sobre a infância, fragmento esse no qual transparece de modo singular o mistério de Jesus. Narra ele que, todos os anos pela Páscoa, os pais de Jesus iam em peregrinação a Jerusalém. A família de Jesus era piedosa.

Sucede às vezes, nas descrições da figura de Jesus, que se dá realce quase só ao aspecto da contestação, à sua intervenção contra uma falsa devoção […] Realmente, na sua missão de Filho, introduziu uma nova fase do relacionamento com Deus […] Isto, não é, porém, um ataque à religiosidade de Israel. A liberdade de Jesus não é a liberdade do liberal, mas a do Filho, ou seja, a liberdade daquele que é verdadeiramente piedoso. Como Filho, Jesus traz uma nova liberdade, mas não a de alguém que viver sem qualquer vínculo; antes é a liberdade d’Aquele que está totalmente unido à vontade do Pai e ajuda os homens a alcançarem a liberdade da união interior com Deus.


[…] A Torah prescrevia que cada israelita, por ocasião das três grandes festas – da Páscoa, das Semanas (Pentecostes) e das Cabanas – se devia apresentar no Templo (cf. Ex 23, 17; 34, 23-24; Dt 16, 16-17) […] Para os adolescentes, a obrigação vigorava depois de completarem 13 anos; entretanto, valia também, a prescrição de que eles deviam habituar-se pouco a pouco aos mandamentos e que, para isso, podia servir a peregrinação já aos 12 anos de idade. O facto de Maria e Jesus terem participado na peregrinação prova uma vez mais a religiosidade da família de Jesus. 


Neste contexto fixemos a nossa atenção também no sentido mais profundo da peregrinação: indo três vezes por ano ao Templo, Israel permanece, por assim dizer, um povo de Deus em peregrinação, um povo que está sempre a caminho do seu Deus e recebe a sua identidade e a sua unidade sem cessar do encontro com Deus no único Templo. A Sagrada Família insere-se nesta grande comunidade a caminho do Templo de Deus.


Na viagem de regresso, sucede um imprevisto. Jesus não parte com os outros, e fica em Jerusalém […]. O facto de Jesus não se apresentar [à noite junto aos pais no fim daquele dia] não tem nada a ver com a liberdade dos jovens, remetendo antes, como se verá, para outro nível: a missão particular do Filho. […] O evangelista conta que só depois de três dias é que eles encontraram Jesus no Templo, sentado no meio dos doutores, enquanto os ouvia e interrogava (cf. Lc 2,46). […] Embora os três dias sejam uma indicação de tempo muito realista, é preciso dar razão a René Laurentin que vê aqui uma alusão velada aos três dias entre a Cruz e a Ressurreição. […] Assim, da primeira Páscoa de Jesus, estende-se um arco até à sua última Páscoa, a da Cruz. 


[…] A resposta de Jesus à pergunta da Mãe é impressionante: Como?! Andaste à minha procura? Não sabíeis onde deve estar um filho? Não sabíeis que deve estar na casa do pai, “nas coisas do pai” (Lc 2, 49)? Jesus diz aos pais: estou precisamente onde é o meu lugar: com o Pai na sua casa.


Nesta resposta, são importantes sobretudo duas coisas: Maria dissera: “Teu pai e eu andávamos aflitos à tua procura”. Jesus corrige-a: Eu estou com o Pai. O meu pai não é José, mas um Outro: o próprio Deus. A Ele pertenço, com Ele estou. Porventura pode-se exprimir de forma mais clara a filiação divina de Jesus?


Directamente relacionada com isto está a segunda coisa. Jesus fala de um “dever”, a que Ele se atém. O filho, o menino, deve estar com o pai. […] Ora, este “deve” tem valor já neste momento inicial: Jesus deve estar com o Pai, e assim torna-se claro que aquilo que aparecia como desobediência ou como liberdade inconveniente com os pais, na realidade é precisamente expressão da sua obediência filial. Ele está no Templo, não como rebelde contra os pais, mas precisamente como Aquele que obedece, com a mesma obediência que o conduzirá à Cruz e à Ressurreição. 


São Lucas descreve a reacção de Maria e José às palavras de Jesus com duas afirmações: “Mas eles não compreenderam as palavras que lhes disse”, e ainda, “sua mãe guardava todas estas coisas no seu coração” (Lc 2, 50, 51). A palavra de Jesus é grande demais por essa altura; a própria fé de Maria é uma fé “a caminho”, uma fé que repetidas vezes se encontra na escuridão e, atravessando a escuridão, dever amadurecer. Maria não compreende as palavras de Jesus, mas guarda-as no seu coração, onde as faz chegar lentamente à maturação. 


As palavras de Jesus nunca cessam de ser maiores do que a nossa razão; superam, sempre de novo, a nossa inteligência. A tentação de as reduzir e manipular, para fazê-las entrar na nossa medida é compreensível; de uma reta exegese faz parte precisamente a humildade de respeitar esta grandeza que muitas vezes nos supera com as suas exigências […] Crer significa submeter-se a esta grandeza e crescer pouco a pouco rumo a ela.


Nisto, Maria é deliberadamente apresentada por Lucas como aquela que crê de modo exemplar: “Feliz de ti que acreditaste”, dissera-lhe Isabel (Lc 1, 45). […] Maria aparece não só como a grande crente, mas também como imagem da Igreja, que guarda a Palavra no seu coração e a transmite. 


[…] Depois de afirmar que Jesus crescia em sabedoria e em estatura, Lucas acrescenta a fórmula extraída do Primeiro Livro de Samuel, onde aparece referida ao jovem Samuel (cf. 2, 26): crescia em graça (benevolência, simpatia) diante de Deus e dos homens. Assim o evangelista recorre mais uma vez à correlação entre a história de Samuel e a história da infância de Jesus, correlação essa que apareceu pela primeira vez no Magnificat, o cântico de louvor de Maria por ocasião do encontro com Isabel. Este hino de júbilo e de louvor a Deus, que ama os humildes, é uma nova versão da oração de gratidão com que Ana, a mãe de Samuel, que não tinha filhos, agradece pelo dom do menino com que o Senhor tinha posto termo à sua amargura [1Sm 1, 1ss]. Na história de Jesus – diz-nos o evangelista com a sua citação – repete-se, a um nível mais elevado e de modo definitivo, a história de Samuel. 


Também é importante aquilo que Lucas diz acerca do crescimento de Jesus não só em idade, mas também em sabedoria. […] é verdade também que a sua sabedoria cresce. Enquanto homem, Jesus não vive numa omnisciência abstrata, mas está enraizado numa história concreta, num lugar e num tempo, nas várias fases da vida humana, e de tudo isto toma forma concreta o seu saber. Manifesta-se aqui, de modo muito claro, que Ele pensou e aprendeu de maneira humana. 


Concretamente torna-se evidente que Jesus é verdadeiro homem e verdadeiro Deus, como exprime a fé da Igreja. A profunda ligação entre ambas as dimensões, em última análise, não podemos defini-la; permanece um mistério e, todavia, manifesta-se de forma muito concreta na breve narração sobre Jesus aos 12 anos; uma narração que que desta maneira abre, ao mesmo tempo, a porta para o conjunto da sua figura que depois nos é narrada pelos Evangelhos.


Joseph Ratzinger/Bento XVI,
A Infância de Jesus (epílogo),
 pp.101-106