sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Os miseráveis: Revisitando o drama romântico de inspiração cristã


26.12.12 | 11:17. Arquivado em Crítica cinematográfica 

O grande êxito do musical que adapta “Os miseráveis” passa para o ecrã numa realização do oscarizado Tom Hooper. Fiel á obra romântica de Víctor Hugo mantém a inspiração profundamente cristã do original, transferida de um libreto teatral com pouco diálogo falado e 50 canções do compositor Claude-Michel Shonberg e letristas Alain Boublily Herbert Kretzmer. A novidade desta adaptação é que toma a obra de teatro musical como ponto de partida e assume o desafio, do que sai bastante bem, de transplantá-lo à linguagem cinematográfica.

A obra literária é um clássico da novela romântica com conotações políticas, éticas e religiosas. O antagonismo entre a bondade do ex-recluso redimido Jean Valjean e a persistente perseguição do inspector Javert preso no mal se exibe durante a insurreição de Junho de 1832 em Paris. A situação de miséria económica, as consequências devastadoras da peste e os abusos da monarquia explodem numa pequena rebelião republicana, depois da morte do general Jean Maximilien Lamarque, que é esmagada pelas tropas do rei Luís Filipe I. A novela serve-se deste arquétipo de rebelião frente à exploração para mostrar a possibilidade da mudança desde a transformação pessoal numa chave social e utópica inspirada pelo sentido cristão. ( )


Contamos com até 70 adaptações em 15 idiomas de uma das obras literárias com maior presença cinematográfica. De entre elas, pessoalmente, inclino-me pela versão dirigida por Bille August (1998) com as interpretações de Liam Neeson, Geoffrey Rush e Uma Thurman. Esta nova proposta tem a vantagem de usufruir do êxito do musical transferindo-o para uma realização com bom ritmo geral, uma posta em cena espectacular e umas actuações que sobressaem de Anne Hathaway numa Fantine dramaticamente convincente, Russell Crowe numa interpretação do inspector Javert menos malvada mas sugestiva por ambígua e um Hugh Jackman que, na pele do protagonista Jean Valjean, vai-se tonificando segundo avança a metragem. Também se destacam entre os secundários Amanda Seyfried no papel de Cosette adulta, Helena Bonham Carter e Sacha Baron Cohen no papel dos Thénardier, um matrimónio de pícaros de inacabável capacidade de adaptação, e Samantha Barks no papel de Éponine a oponente pobre de Cosette resultando mais frouxo Eddie Redmayne no papel do jovem revolucionário enamorado Marius.

Cinematograficamente no desenvolvimento das sequências concretas abusa-se das angulações, da instabilidade da câmara e dos primeiros planos o que chega a cansar o espectador que apesar destes limites se mantêm, salvo algum alto e baixo, enganchado emocionalmente. As sequências corais sofrem de falta de movimento o que faz repetitivos os frequentes solos e duos estáticos dos personagens. Ainda que o canto desgarrado, a força musical da partitura, a radicalidade das vivências dos personagens que funcionam como arquétipos e o denso conteúdo espiritual terminam por agarrar o público. Sem dúvida, a posta em cena grandiosa sofre de profundidade simbólica, assim a paixão a cruz são mostradas mais como um sublinhado estético que como ícones do drama de Deus e o mundo. As controvérsias que aludem à transcendência por simples diluem a profundidade na espectacularidade fazendo que a profundidade do canto se sinta incómoda no efectivo formal.

Desde o ponto de vista espiritual é um claro exemplo da vigência do relato cristão como proposta de sentido. Os espectadores ficam agarrados pelo drama romântico porque ainda que reconheçam a simplificação emocional que se afasta do realismo pós-moderno descobrem que a simplicidade esconde a verdade dos conflitos humanos sobre o amor e o desamor, a ambição e a generosidade, a lei e a misericórdia, a violência e o perdão ou a verdade e a aparência. O poder do drama tem em Cristo um protagonista calado ainda que encarnado em personagens como o bispo Myriel e principalmente Jean Valjean. Nele se representa a bondade orante com quatro orações memoráveis: na hora da conversão, no momento de revelar a sua identidade para salvar um inocente, na petição pelo seu jovem oponente do seu amor paternal por Cosette e na hora final.

Na película, como na novela, o tema cristão da eleição paulina entre graça e lei se apresenta como argumento central na luta entre Valjean e o inspector Javert, onde só o perdão redentor tem força geradora de futuro ao ter em Deus a sua origem. Mas também a versão musical exibe outros aspectos cristãos essenciais como a luta pela justiça e a mudança social desde a conversão pessoal, o sacrifício como disponibilidade e desenraizamento, a esperança mais além da morte e o horizonte da comunhão dos santos como planificação das utopias mundanas. "Amar a outra pessoa é ver o rosto de Deus" cantam no final Fantine, Valjean e Eponine, os personagens da renúncia de amor. E esta é a grande entrada da novela, o musical e a película, recordar a actualidade do relato cristão e fazer memória do definitivo. “Perdido no vale da noite, é a música de um povo que está subindo à luz” cantam desde a eternidade os personagens.


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