Reflexões sobre o actual ateísmo relativista
Pe. Anderson Alves
ROMA, Segunda-feira, 28 Janeiro 2013
Em um texto anterior[i],
nos perguntávamos se fosse possível conciliar o relativismo e o
ateísmo. E víamos que, segundo três famosos ateus (Nietzsche, Adorno e
Horkheimer) o ateísmo, ao negar a origem do conhecimento e ao tomar como
verdade a inexistência de Deus, cai numa contradição insuperável[ii].
De fato, quem nega a existência da verdade, não poderia coerentemente
afirmar que Deus não existe. Entretanto, sabemos que há quem se esforce
muito por conciliar relativismo e ateísmo, colocando um ateísmo
indiscutível e dogmático como fundamento do relativismo e construindo um
sistema de pensamento no qual se parte da negação de Deus e, a partir
dessa verdade quase “divina”, afirma-se um relativismo moral e cognitivo
radical.
Um pensador que colocou em íntima relação o ateísmo com o
tema da verdade foi F. Nietzsche, autor que se considerava «ateu por
instinto». De fato, seu ateísmo voluntarista tinha como consequência a
afirmação de um forte relativismo e a verdade era considerada como «um
exército de metáforas, metonímias», «ilusões das quais se esqueceu a sua
natureza ilusória», «moedas nas quais as imagens foram consumidas»[iii].
Em outro texto famoso, ele fazia uma interessante observação: «receio
que não possamos nunca afastar-nos de Deus porque ainda acreditamos na
Gramática»[iv]. Desse modo, o ateísmo radical deveria conduzir a
uma sociedade sem ciências, sem explicações últimas, na qual o homem só
seria capaz de conhecer seus próprios estados de ânimo. Porém, tudo isso
parte de uma afirmação com valor de verdade absoluta: «Deus morreu,
Deus continua morto, nós o matamos»[v]. O “teomicídio” seria,
pois, o ato supremo de uma vontade que busca uma autonomia absoluta, e
não de uma demonstração racional. E aquele gesto traria consigo um
relativismo radical, mas não certamente absoluto.
É certo que hoje muitos pensam que o relativismo seja o fundamento do
ateísmo, mas isso se deve a um modo superficial de examinar o problema.
Se o relativismo é total, se não há nenhuma verdade, jamais pode ser
verdade que Deus não exista. De modo que, surpreendentemente, o ateísmo
mesmo coloca limites ao relativismo. Em outras palavras, pode existir um
ateísmo relativista, ou seja, um ateísmo a partir do qual se deduz o
relativismo, mas não um relativismo ateu.
Então, é impossível um relativismo absoluto? Coloquemos de outro modo
a questão: pode ser verdade que não existe nenhuma verdade? Só há duas
respostas possíveis: “sim, é verdade que não existe nenhuma verdade”.
Ora, quem diz isso, assume, talvez inconscientemente, que há alguma
verdade; e se alguém disser “não, não pode ser verdade que não exista a
verdade”, certamente estaria usando melhor a sua razão e teria
encontrado a resposta lógica. De modo que, com uma resposta ou outra, a
conclusão é sempre a mesma: não pode existir um “relativismo absoluto”, a
verdade sempre faz parte do nosso pensamento e discurso.
A consequência disso é, que por incrível que pareça, o relativismo só pode ser relativo, uma
vez que só pode ser parcial. Isso porque é sempre necessário aceitar
que há alguma verdade, que algo pode ser conhecido. Certo tipo de
relativismo pode ser aceito para as opiniões, que são afirmações de algo
pouco fundamentado, de modo quando se opina se há receio de que a
afirmação contrária seja a verdadeira. Mas nem tudo na nossa comunicação
é simples opinião.
Aristóteles dizia que como a verdade é uma realidade primeira do
nosso pensamento, quem nega a verdade, afirma a verdade. Ou seja, quem
nega que ela exista, sabe já o que ela seja e supõe que é verdade a sua
não existência, o que é uma contradição em termos. Outro modo de fugir
ao compromisso com a verdade seria assumir a posição céptica, ou seja,
aquela postura de certos pensadores que dizem não ser possível nem
afirmar, nem negar a verdade. Quem assume essa posição, certamente se
livra da linguagem e da “Gramática”, mas isso traz consigo uma
consequência nefasta: não negar nem afirmar algo, faz o ser humano se
tornar semelhante a uma planta, com quem não é educado discutir.
O relativismo só pode, pois, ser relativo, ou seja, só pode ser
aplicado a algumas afirmações e nunca a todas. A verdade não pode jamais
ser excluída da vida e da linguagem humana, a menos que alguém se
conforme em viver como uma planta. F. Nietzsche só pôde dizer que a
verdade é «um exército de metáforas», uma «ilusão», uma moeda sem valor
porque sabia perfeitamente o que é uma metáfora, uma ilusão, uma moeda
com valor. Negar a verdade implica sempre aceitar a verdade, assim como
negar Deus implica pressupor a sua existência.
Então, temos que colocar agora a incómoda questão: afinal de contas, o
que é a verdade? Platão dizia que «verdadeiro é o discurso que diz as
coisas como são, falso o que diz como as coisas não são»[vi]. E
Aristóteles afirmou algo tão simples quanto essencial: «Negar aquilo que
é, e afirmar aquilo que não é, é falso, enquanto afirmar o que é e
negar o que não é, é a verdade»[vii]. A verdade se dá quando o nosso discurso expressa o que as coisas realmente são.
Em que sentido então pode ser aceito o relativismo? Já iniciamos aqui
a resposta, mas a aprofundaremos numa outra ocasião. O que importa
agora é deixar clara a conclusão a que chegamos: o relativismo não pode
ser absoluto, só pode ser, por incrível que pareça, relativo.
Pe. Anderson Alves, sacerdote da diocese de Petrópolis – Brasil.
Doutorando em Filosofia na Pontificia Università della Santa Croce em
Roma.
[ii] M. HORKHEIMER e Th.ADORNO, Dialettica dell’illuminismo,
Einaudi, Torino 1966, p. 125: «Percebemos “que também os não
conhecedores de hoje, nós, ateus e antimetafísicos, alimentamos ainda o
nosso fogo no incêndio de uma fé antiga dois milénios, aquela fé cristã
que era já a fé de Platão: ser Deus a verdade e a verdade divina”. Sendo
assim, a ciência cai na crítica feita à metafísica. A negação de Deus
implica em si uma contradição insuperável, enquanto nega o saber mesmo».
[iii] Cfr. F. NIETZSCHE, Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, ed. Hedra, São Paulo 2007.
[iv] Cfr. Idem, Crepúsculo dos Ídolos, ed. Companhia das Letras, São Paulo 2006.
[v] Idem, A Gaia ciência, ed. Hemus, Curitiba 2002, p. 134.
[vi] PLATÃO, Crátilo 385 b; cfr. também Sofista, 262 e
[vii] ARISTÓTELES, Metafísica, IV, 7, 1011 b 26 e segs.
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