sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

A Nobel que se considerava «agnóstica crente» e acreditava que a religião é «crer no bem»

Rita Levi Montalcini

Foi a primeira mulher a ser admitida na Pontifícia Academia das Ciências. De origem judaica, sofreu perseguições e foi amiga de três Papas. Faleceu em 30 de Dezembro de 2012.

Actualizado 3 Janeiro 2013

M. V. / ReL

Cientista, escritora e dona de uma esmagadora personalidade, Rita Levi Montalcini foi sem dúvida uma mulher comprometida e perseverante nos seus ideais.

Quando no passado 30 de Dezembro falecia em Roma aos 103 anos de idade, a Santa Sé mostrava também o seu pesar pela perda da célebre investigadora através do seu porta-voz, Federico Lombardi, que se referiu a ela como “uma figura eminente, não só pelos seus altos méritos científicos, mas também pelo seu compromisso civil e moral que a converteram numa inspiração para a comunidade italiana e internacional”.

A religião do bem
Nascida em Turim, no seio de uma família judia, Rita Levi considerou-se sempre ateia, mas o seu foi um ateísmo sui generis. Afirmava crer no mesmo Deus em que acreditavam Einstein e Spinoza, uma crença baseada sempre em sólidos princípios éticos, com os que foi sempre coerente.

“Ainda declarando-me laica ou melhor, agnóstica e livre-pensadora, invejo a quem tem fé e me considero profundamente “crente” se por religião se entende crer no bem e no comportamento ético: se não se perseguem estes princípios, a vida não merece a pena ser vivida”, explicava numa entrevista no ano 2006.

Mulher pioneira e Nobel de Medicina
Desde muito jovem decidiu entregar a sua vida à Ciência, em concreto ao estudo da neurobiologia, e em 1986 recebeu o prémio Nobel de Medicina pelo seu descobrimento do chamado Factor de Crescimento Nervoso, graças ao qual se demonstra que o cérebro pode “regenerar-se”, um descobrimento chave para a prevenção do Alzheimer.

Membro das mais prestigiosas academias científicas internacionais, foi a primeira mulher admitida na Pontifícia Academia das Ciências, em 1974, e, segundo as suas próprias palavras, “tive uma boa relação com Paulo VI e com Wojtyla, também com Ratzinger, ainda que menos profunda que com Paulo VI, a quem estimava muito. Não a tive por outro lado com aquele considerado o Papa Bom, Roncalli (João XXIII), que para mim não era bom, porque era muito amigo de Mussolini e quando começaram as leis antifascistas disse que havia feito um grande bem a Itália”.

Afecto com o Papa
A sua admiração pelo Pontífice ficou patente quando em 2008 alguns docentes da Universidade da Sapienza em Roma assinaram uma carta para impedir que o Papa inaugurasse o ano académico. Alguém lançou o boato de que Rita Levi havia assinado a dita carta e ela reagiu de imediato: “Na qualidade de membro da Pontifícia Academia das Ciências e da admiração que professo pelo Pontífice, não teria expressado jamais o que se me atribui. Estou muito longe de assumir uma atitude contra Bento XVI”.

Vítima da perseguição nazi
Como judia, Rita Levi viveu o drama da perseguição nazi. Trabalhou como ajudante do famoso histólogo italiano Giuseppe Levi até que em 1938 Benito Mussolini publicou o célebre “manifesto” que proibia todas as pessoas judias de acederem a alguma carreira académica ou profissional.

Rita recluiu-se então na sua habitação, onde montou um pequeno laboratório: “Os jovens de hoje ignoram quase por completo tudo aquilo, e às vezes não acreditam que o Holocausto ocorreu verdadeiramente. A mim parece-me que recordar as tragédias que ocorreram há quase um século és absolutamente necessário e útil, sobretudo para não repeti-las. É necessário libertar o homem da obsessiva cortesia para com os indivíduos com um forte carisma e privados de moral, como todos aqueles que dirigiram as tragédias de meados do século passado: Hitler, Mussolini, Stalin, Mao... No meu caso, não sinto rancor pessoal; sem as leis raciais, que determinaram que os judeus éramos uma raça inferior, não teria tido que recluir-me na minha habitação para trabalhar, em Turim e logo em Asti, no que foi um tempo tão frutífero para a minha investigação. Nunca me senti inferior por isso”, reconhecia.

Ali, na sua reclusão investigatória obrigada decorreu toda a Segunda Guerra Mundial até que em 1946 aceitou um convite da Universidade de Washington, onde finalmente ficou 30 anos e onde realizou a maioria do seu trabalho científico pelo que acabaria recebendo, junto com Stanley Cohen, o prémio Nobel de Medicina.

Um cérebro vivo
Junto com a sua irmã Paola, Rita Levi criou em 1992 a Fundação Levi Montalcini que oferece bolsas de estudo a jovens africanas para que renovem a vida científica e social dos seus países de origem: “A vida tem valor se concentramos a atenção não só em nós mesmos, mas sim no mundo que nos rodeia; a parte mais importante do nosso cérebro temos que utilizá-lo para ajudar os outros, não só para fazer descobrimentos”, afirmou numa das suas últimas lições de altruísmo científico.

Descanse em paz Rita Levi, a mulher que demonstrou com o exemplo que “o corpo se enruga, mas não o cérebro”. E, caberia dizer, muito menos o espírito.


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